sexta-feira, 19 de março de 2010

Educação domiciliar constitui crime?

“A sociedade do futuro é aquela em que vamos aprender a qualquer hora, em qualquer lugar e com qualquer pessoa” (DIMENSTEIN, Gilberto. Convergências para o futuro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 mar. 2010. C8).

Octávio Stucchi, meu Professor de Processo Civil na faculdade, ensinou-me a não dar palpite sem conhecer os autos, especialmente nos litígios em andamento. Às vezes, entretanto, não posso me calar e abro exceção à lição do mestre.

A Folha de S. Paulo, na edição de 6 de março, C1, publicou a notícia de que, numa comarca do interior de Minas Gerais, um casal foi condenado, no cível e no juízo penal, por educar dois filhos adolescentes em casa. Eles são adeptos da prática homeschooling, muito conhecida na Europa e nos Estados Unidos, denominada “ensino domiciliar”, na qual os pais ministram aos filhos instrução na própria residência.

No processo penal, a condenação lhes aplicou pena de multa por crime de abandono intelectual, que tem a seguinte definição:

“Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar” (art. 246 do CP).

A ação penal não é nova, vindo de acusação de 2006. Em 2008, o Magistrado determinou a realização de uma prova de conhecimentos gerais aos menores, elaborada pela Secretaria Estadual de Educação. Eles, hoje com 15 e 16 anos, obtiveram notas 65 e 68, superior a 60, mínimo para a aprovação oficial.

Considero não haver crime de abandono intelectual. O fato é atípico, consignando que minha opinião limita-se ao campo estritamente penal.

Observo que o tema não é pacífico, entendendo-se, em sentido contrário ao meu, que a educação domiciliar é ilegal, prejudicando a vivência social dos menores pela ausência do ensino escolar. Quanto a essa fundamentação, de relance, cumpre anotar que, nos dias atuais, o ambiente escolar, dentro e fora dos estabelecimentos de ensino público e particular, salvo exceções, permite aos pais a indicação de novo exemplo do elemento normativo do tipo incriminador, quando faz referência a só existir crime quando a omissão ocorre “sem justa causa”.

Acredito que a condenação criminal resultou da aplicação da vencida teoria da ilicitude formal, interpretando como “escolar” a superada elementar “instrução” do art. 246 do CP.

O crime, formalmente, é conceituado, do ponto de vista da lei, como um fato típico e ilícito. Materialmente, considera-se delito o fato que ofende um bem jurídico. Projetadas essas noções à antijuridicidade, tem-se a formal na simples contradição entre o fato e a norma de proibição, enquanto a material só ocorre quando há ofensa a um bem jurídico. Dessa maneira, a ilicitude formal nada mais é do que a tipicidade, qualidade que possui o fato de amoldar-se a um tipo incriminador. A consequência está em desprezar-se a antijuridicidade formal, já expressa na tipicidade. Assim, a ilicitude, segundo elemento do crime, é sempre material, não bastando a denominada formal. Como ensinava JOSÉ FREDERICO MARQUES, a adequação típica mostra-se vazia quando meramente formal, isto é, quando se pretende expressar a ilicitude de uma conduta em face da singela contradição com o mandamento proibitivo, omitindo-se a sua valoração diante do bem que se intenta proteger.

No caso, repito, a acusação baseou-se na contradição entre o mandamento proibitivo (”não deixarás de prover à instrução de filho em idade escolar”), qualificada a elementar “instrução”, expressão, como dito, pouco usada na literatura especializada, como “escolar”, e o fato concreto, no qual ela não foi “escolar” e sim “domiciliar”. Esqueceu-se, porém, como ensina a teoria da imputação objetiva, de que a interpretação das normas penais incriminadoras começa pela pesquisa da tutela do bem jurídico constitucional, o qual, na questão, não foi lesado. E, sem lesividade, inexiste fato típico.

A Carta Magna, após qualificar a educação como direito social (art. 6.º), impõe aos pais o dever de “educar” os filhos (art. 229). Não dispõe sobre a obrigação de educá-los em “escola” (pública ou particular). A Lei de Diretrizes e Bases, porém, uma das fontes da legislação ordinária sobre o assunto, não determina o dever de “educação” em sentido amplo (Lei n. 9.394/96). Restringe-se a disciplinar a “educação escolar” (art. 1.º, §§ 1.º e 2.º), prevendo a matrícula obrigatória no “ensino fundamental” (art. 6.º). E o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei n. 8.069/90), em seu art. 55, obriga os pais a matricularem seus filhos na “rede regular de ensino”, cominando multa civil no caso de descumprimento (art. 249). O Plano Nacional de Educação menciona a palavra “escola” dezenas de vezes (Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001).

Nota-se, pois, que, enquanto a Constituição Federal (CF) dispõe sobre “educação”, abrangendo a escolar e a domiciliar, a legislação ordinária regulamenta somente a “escolar” (pública ou privada). E mais: obriga os pais a matricular seus filhos em “escola”. Sob esse aspecto, significa: para a legislação ordinária brasileira, a educação domiciliar é ilícita. De ver-se que, como a interpretação das leis deve atender ao princípio da conformidade à CF, conclui-se que a lei ordinária, restritiva, não pode imperar sobre a superior, tacitamente extensiva. É simples: se a Carta Maior impõe o dever de educação dos filhos, não se atendo, implicitamente, à escolar, não pode ser legal norma que considera criminoso o pai que provê o filho de educação domiciliar.

O Direito Penal, por meio de prescrições legais, tem por finalidade a defesa de interesses jurídicos, isto é, todos os que se destinam à satisfação de uma necessidade humana e são reconhecidos pelo Direito como necessários à convivência social pacífica ou, nas palavras de CLAUS ROXIN, “todos os dados que são pressupostos de um convívio pacífico entre os homens, fundado na liberdade e na igualdade”¹.

Para que se torne legítima a previsão de normas penais na defesa de determinado bem, é preciso que ele seja de elevada importância (princípio da fragmentariedade) e, além disso, que inexistam outros mecanismos de controle formais capazes de propiciar soluções menos lesivas à sociedade ou aos indivíduos (princípio da subsidiariedade). A aplicação das leis penais de incriminação só é recomendada como último recurso.

A família, sem dúvida, destaca-se como um dos bens jurídicos que, a par da extensiva regulação que se lhes dão as normas extrapenais da CF, do Código Civil (CC), do ECA, da Lei de Diretrizes e Bases etc., necessita, às vezes, da presença do Direito Penal para lhes atribuir a devida proteção. MAGALHÃES NORONHA já dizia, em 1961:

“É quase supérfluo insistir sobre a necessidade da proteção familiar, pois justificar esta é a mesma coisa que justificar a tutela à sociedade, já que é de todos sabido, constituindo lugar comum, que a família é a base desta.”²

A advertência é válida para os dias de hoje, confirmada pela CF de 1988 ao declarar de modo eloquente: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (art. 226, caput).

Dos diversos deveres inerentes à família, o de educação, que assiste aos pais em relação aos filhos menores, merece especial destaque, não tendo sido esquecido pela nossa Lei Maior, como ficou consignado: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, […]” (art. 229). Sobre o mesmo tema, a Carta Magna, em seu art. 205, determina: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. A Lei de Diretrizes e Bases, por sua vez, apresenta a mesma redação (art. 2.º).

O CC, em relação aos filhos, prevê competir aos pais “dirigir-lhes a criação e a educação”. E o art. 22 do ECA impõe aos pais o dever de “propiciarem o sustento, a guarda e a educação dos filhos menores” (Lei n. 8.069/90).

A obrigação de educação pode ser cumprida de dois modos: matriculando o filho em escola, isto é, garantindo-lhe o ensino formal (intelectual, acadêmico) ou ministrando-a no lar (instrução informal). Entende-se como tal aquela fornecida fora dos quadros do ensino escolar, ministrada por um sistema sequencial e progressivo, com duração variável, permitindo o pleno desenvolvimento da pessoa.

Se a CF impõe aos pais o dever de “educação” e, se ela pode ser escolar e domiciliar, admitindo as duas, esta última não pode ser considerada ilegal. O art. 246 do CP, portanto, não tipifica o fato do pai que deixa de matricular o filho na escola, mas sim o que não lhe providencia o devido ensino, seja formal ou domiciliar. Por isso, este não pode ser considerado delito de abandono intelectual. Falta-lhe tipicidade, sem necessidade de socorrer-se da eventual análise da elementar “sem justa causa” (elemento normativo do tipo).

Não desconheço a existência do Projeto de Lei n. 3.518, de 5 de junho de 2008, de autoria dos Deputados Federais Henrique Afonso e Miguel Martini, tramitando no Congresso Nacional. Acrescentando um parágrafo único ao art. 81 da Lei de Diretrizes e Bases (Lei n. 9.394/96), pretende disciplinar o ensino domiciliar.

Em suma, a atitude dos pais que dão aos filhos menores ensino no âmbito familiar, sem os matricular em escola pública ou particular, cumpre o dever constitucional de educá-los, de modo a, por isso, não se lhes poder atribuir prática delituosa. Genericamente, no sentido de inexistir crime na hipótese, é a lição de PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR, MIRABETE, FERNANDO CAPEZ e CEZAR ROBERTO BITENCOURT. Da mesma forma, como exposto, estou sinceramente convencido de que o fato questionado é atípico.

Por:  Prof. Damásio de Jesus

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