segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Jornais: arquivo sigiloso da Câmara revela notas de "fantasmas"


(Obs: dois deputados pernambucanos na lista)

Documentos mantidos até agora sob sigilo pela Câmara mostram que empresas de fachada ou com endereços fantasmas são beneficiárias do dinheiro que a Casa destina para a atividade parlamentar.

A Folha obteve por via judicial as informações de cerca de 70 mil notas fiscais que foram objeto de reembolso aos deputados federais nos últimos quatro meses de 2008. É uma pequena amostra da caixa-preta que o Congresso mantém desde 2001, quando foi criada a verba indenizatória, adicional mensal de R$ 15 mil para despesas de trabalho (o salário de um deputado é R$ 16,5 mil).

Nas duas últimas semanas, a Folha analisou cerca de 2.000 páginas entregues pela Câmara ao Supremo Tribunal Federal a partir de mandado de segurança e percorreu endereços em cinco Estados e no Distrito Federal para checar os dados.

Deparou-se com uma série de endereços fictícios e com empresas que são totalmente desconhecidas do mercado. Os deputados que usaram notas dessas empresas alegam que os serviços foram prestados e dizem que não podem responder por eventuais problemas delas.

Um deles, Marcio Junqueira (DEM-RR), recebeu pelo aluguel de carros reembolsos mensais de cerca de R$ 15 mil da PVC Multimarcas. A empresa é do advogado do parlamentar, Victor Korst, e tem como endereço o escritório deste.

Criada há pouco mais de um ano, a PVC emitiu ao deputado notas fiscais de numerações inferiores a dez, o que indica que Junqueira é possivelmente seu único cliente. "Se você for dar nota de tudo o que faz e pagar todos os impostos, você morre de fome", justificou-se Korst.

Após abril deste ano, quando a Câmara passou a divulgar na internet os dados da verba, Junqueira deixou de pedir reembolso pelo serviço: "Acho que ele não teve ainda a felicidade de fazer com outros os contratos que fez comigo".

Endereços falsos

São muitos os casos de empresas que não existem nos endereços informados à Receita, situação que pode configurar crimes como falsidade ideológica e contra a ordem tributária (dois a cinco anos de prisão).

Os deputados baianos Severiano Alves (PMDB) e Uldurico Pinto (PHS) entregaram uma série de notas da Valente & Bueno Assessoria Empresarial, que informou à Receita funcionar num apartamento na Asa Sul de Brasília. O dono do imóvel nunca ouviu falar da firma.

No período analisado, a Valente & Bueno teria recebido R$ 56 mil dos dois deputados, mas, segundo eles, os pagamentos remontam a 2006, o que elevaria o valor a pelo menos R$ 350 mil se o padrão de pagamentos for constante. Severiano e Uldurico disseram que os serviços foram prestados, mas não souberam detalhá-los.

Severiano falou que a assessoria era "consultoria de mídia, principalmente" e que interrompeu os trabalhos em abril porque a Câmara teria proibido a contratação de consultorias, o que não é verdade. Uldurico disse não se lembrar exatamente o que solicitou -foram "trabalhos jurídicos, específicos".

Empresas "funcionam" em endereços fictícios

Rio Acima (MG), cidade com pouco mais de 8.000 habitantes a 41 km de Belo Horizonte, não tem aeroporto nem pista de pouso. Mas é lá que, no papel, fica a Global Express Serviços em Aviação Ltda, empresa de taxi aéreo que mais recebeu pagamentos da Câmara dos Deputados nos quatro últimos meses de 2008: R$ 96,2 mil.

No endereço registrado na Receita e na Junta Comercial moram o metalúrgico aposentado João Bosco das Neves, 54, sua mulher, filha e um cachorro que não para de latir ao menor sinal de estranhos. A casa é a mais mal conservada da vizinhança, com rebocos se descolando e tijolos à mostra.

Na nota que os deputados deram à Câmara, o endereço é descrito como Rua do Rosário, 131, "sala 02", sugerindo um imóvel comercial. O telefone é de uma empresa homônima, que faz manutenção de aparelhos eletrônicos em Belo Horizonte. Lá, um funcionário disse que a "Global Aviação fica em outro lugar, em Rio Acima".

Na cidade do interior mineiro, João Bosco afirma que a empresa nunca funcionou ali. Sua mulher afirma que "presta serviços" para a Global. Diz ganhar R$ 20 por mês para receber as correspondências e "mandar e-mails": "O que eu sei é que eles fazem palestras para o pessoal da aviação. Não sabia que tinha negócio de deputado no meio".

A empresa não tem autorização da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) para explorar o transporte de passageiros. O dono da Global, Leonardo de Vasconcelos Vieira, 34, nega que a empresa seja fantasma.

Segundo ele, o endereço em Rio Acima foi indicado pela prefeitura local para fugir dos valores de ISS cobrados em Belo Horizonte, onde, segundo ele, a empresa efetivamente funciona.

Segundo Leonardo, a Global não tem aviões e não faz táxi aéreo: "Nós fazemos subfrete, é como um mercado paralelo para fugir de custos mais altos". Na prática, diz ele, a empresa é uma intermediária entre eventuais clientes, como deputados, e empresários que possuem aviões disponíveis. Sem site ou qualquer outro tipo de divulgação, diz funcionar na base da "indicação" e da "confiança".

Firmas que emitiram notas fiscais para os deputados cearenses José Airton Cirilo (PT) e Eugênio Rabelo (PP) também informaram em seus cadastros fiscais endereços inexistentes.

A Locautos Campo Verde, que emitiu notas para Rabelo, deveria estar localizada na Estrada do Largão, s/n, em Eusébio (a 27 km de Fortaleza). No local, rebatizado de rua Benedito Ferreira, os moradores nunca ouviram falar dela: "Locadora de carros nunca teve aqui", disse o comerciante João Ribeiro, 54, que mora ali há 17 anos. Na rua, sem asfalto, só há casas e terrenos baldios.

Serviços foram prestados, dizem deputados

Os deputados federais afirmaram que os serviços de que pediram reembolso foram prestados e que eventuais problemas são de responsabilidade das empresas. Os responsáveis pelas notas fiscais encontrados pela Folha também negaram irregularidades.

O deputado Marcio Junqueira (DEM-RR) reconheceu que aluga carros da empresa de seu advogado, Victor Korst. "As vezes vem gente de Roraima, aí mando deixar um carro à disposição. Os prefeitos vêm, às vezes gente doente que precisa se locomover." Korst diz que alugou dois Honda Civic, um Toyota Corolla e uma picape S10. "A empresa existe direitinho, tem contrato, está tudo na Câmara, que é rigorosa."

Severiano Alves (PMDB-BA) e Uldurico Pinto (PHS-BA) afirmaram que todo o serviço solicitado à Valente & Bueno Assessoria, que não funciona no endereço declarado, foi entregue. "Ela [a dona da Valente] é uma pessoa séria, com endereço conhecido. O serviço era de consultoria, informação, pesquisa, pareceres", disse.

A proprietária, Célia Valente, afirmou que o atual endereço da empresa é o seu escritório, em Brasília. Ela disse não reconhecer o endereço listado na Receita Federal. Afirmou que prestava principalmente consultoria jurídica aos deputados e que o serviço foi interrompido em abril (quando a Câmara passou a divulgar os gastos), por opção dos deputados.

Deputados que apresentaram notas da SC Comunicações, cuja "sede" é uma casa onde a empresa é desconhecida, afirmaram, em sua maioria, que a firma prestou serviços de assessoria de imprensa.

Segundo alguns deles, o serviço foi prestado por meio de pessoas subcontratadas. São eles: Uldurico, Jorge Khoury (DEM-BA), Edigar Mão Branca (PV-BA), José Rocha (PR-BA), Valdir Colatto (PMDB-SC), Arnaldo Vianna (PDT-RJ), Luiz Carreira (DEM-BA), Márcio Marinho (PRB-BA).

Uldurico disse que a assessoria foi jurídica. Khoury afirmou que deveria ter buscado mais informações. "Não sabia desses detalhes [o endereço fictício da empresa]." "É um profissional qualificado que prestou os serviços. Ele acompanhava as reuniões, participava, fazia informes", disse Carreira.

Os deputados que apresentaram notas da Global Express, que também não funciona no endereço informado, disseram terem feito os voos. "Se eu contrato um cara e ele te dá uma nota falsa, aí você fala assim: "O deputado arrumou uma nota fria". Peraí, o serviço que eu contratei foi entregue", disse Narcio Rodrigues (PSDB-MG).

Fábio Ramalho (PV-MG) informou o nome do piloto e a rota. Saraiva Felipe (PMDB-MG) fez o mesmo, e disse que pediu à Câmara a nota original para checar a situação da empresa.

Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG) disse que irá apurar o caso. "O que eu posso garantir é que eu sou um sujeito extremamente rigoroso", afirmou.

Os outros deputados que apresentaram notas são Leonardo Quintão (PMDB-MG) e Mário de Oliveira (PSC-MG), que não se pronunciaram.

O gabinete de Zezéu Ribeiro (PT-BA) disse que o serviço prestado pela Seven Promoções, que tem endereço fictício, foi na área de informática. A empresa diz que já funcionou no endereço informado. O proprietário do imóvel nega.

A assessoria do deputado Ademir Camilo (PDT-MG) disse que ele aluga um Siena e um Doblò na Meridiano Locação de Equipamentos, especializada em aluguel de andaimes. "Os carros existem, os contratos existem, está tudo regular."

Os três deputados que apresentaram notas da Information Systems -Carlos Eduardo Cadoca (PSC-PE), Cezar Silvestri (PPS-PR) e Edgar Moury (PMDB-PE) - também disseram ter alugado os carros.

A assessoria de Tonha Magalhães (PR-BA), que contratou empresa de vigilância não autorizada a funcionar pela Polícia Federal, argumentou que a segurança prestada a ela é desarmada, o que dispensaria o aval da polícia. A PF diz que o aval é necessário.

Professor Sétimo (PMDB-MA) disse que o contrato com a Pull Comercial, cujo endereço é o de um sindicato, foi regular.

Fonte: Folha de S. Paulo

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